Fenomenologia do olhar

Fra Angelico – Anunciação

“No entanto há uma alternativa a essa incompleta semiologia. Ela se baseia na hipótese geral de que as imagens não devem sua eficácia apenas à transmissão de saberes – visíveis, legíveis ou invisíveis – mas que sua eficácia, ao contrário, atua constantemente nos entrelaçamentos ou mesmo no imbróglio de saberes transmitidos e deslocados, de não-saberes produzidos e transformados. Ela exige, pois, um olhar que não se aproximaria apenas para discernir e reconhecer, para nomear a qualquer preço o que percebe – mas que primeiramente se afastaria um pouco e se absteria de clarificar tudo de imediato. Algo como uma atenção flutuante, uma longa suspensão do momento de concluir, em que a interpretação teria tempo de se estirar em várias dimensões, entre o visível apreendido e a prova vivida de um desprendimento. Haveria assim, nessa alternativa, a etapa dialética – certamente impensável para um positivismo – que consiste em não apreender a imagem e em deixar-se antes ser apreendido por ela: portanto, em deixar-se desprender do seu saber sobre ela.O risco é grande, sem dúvida. É o mais belo risco da ficção. Aceitaríamos nos entregar às contingências de uma fenomenologia do olhar, em perpétua instância de transferência (…) ou de projeção (…) Para isso é preciso voltar ao mais simples, isto é, às obscuras evidências do ponto de partida. É preciso deixar por um momento tudo que acreditamos ver porque sabíamos nomeá-lo, e voltar a partir daí ao que nosso saber não havia podido clarificar. É preciso, portanto, voltar, aquém do visível representado, às condições mesmas de olhar, de apresentação e de figurabilidade que o afresco nos propôs desde o início.”

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013. P. 24

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O referente espacial na literatura

Fernando Pessoa

O espectro de Ulisses é próprio ao amanhecer do referente. O herói literário precede o navegador nas regiões mais remotas do mundo, enquanto o imaginário estiver adiantado sobre a realidade. E o referente se projeta e se desenha em função do discurso. O mundo era ainda relativamente vazio (…) Hoje, é o escritor que chega na segunda posição: ele é sempre precedido por aqueles que fixaram o referente, que são, ocasionalmente, os próprios escritores. Como escrever uma linha sobre Lisboa sem os óculos de Pessoa?

WESTPHAL, Bertrand. La Géocritique: réel, fiction, espace. Paris: Les Éditions de Minuit, 2007. P. 138-139

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Tradução intersemiótica

“As línguas apresentam parentescos e analogias naquilo que pretendem exprimir e que, para nós, não é outra coisa senão o ícone como medula da linguagem (…) Por se tratarem de códigos de representação, os sistemas de signos podem se aparentar na empresa comum de aludir a um mesmo referencial icônico. Isso porque o próprio pensamento é intersemiótico e essa qualidade se concretiza nas linguagens e sua hibridização (…) O que já é válido para a tradução poética como forma, acentua-se na tradução intersemiótica. A criação neste tipo de tradução determina escolhas dentro de um sistema de signos que é estranho ao sistema do original. Essas escolhas determinam uma dinâmica na construção da tradução, dinâmica esta que faz fugir a tradução do traduzido, intensificando diferenças entre objetos imediatos. A tradução intersemiótica é, portanto, estruturalmente avessa à ideologia da fidelidade.” (p. 29-30)

PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013

Fico imaginando como seria uma tradução do “Grande Sertão Veredas” para outra língua. Acho que seria o mesmo de tentar ler Ulysses em português.

(obs.: curiosamente, este é o primeiro post que publico com a tag “semiótica”)

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Into the void

Jerry's Map from Jerry Gretzinger on Vimeo.

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The Beauty of Maps

Mais videos da série The Beauty of Maps, exibidos pela BBC.

 

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É fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho?

philosoraptor

“O espetáculo, como a sociedade moderna, está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói sua unidade sobre o esfacelamento. Mas a contradição, quando emerge no espetáculo, é, por sua vez, desmentida por uma inversão de seu sentido; de modo que a divisão é mostrada unitária, ao passo que a unidade é mostrada divida.” (p. 37)

Ganha um biscoito tostines quem conseguir me explicar o que esse cara disse.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de janeiro: Contraponto, v. 102, p. 85-102, 1997.

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As impurezas da pós-modernidade

Bauman

“O serviço de separar e eliminar esse refugo do consumismo é, como tudo o mais no mundo pós-moderno, desregulamentado e privatizado. Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista, e os estádios, em que se disputa o jogo do consumismo, impedem a entrada dos consumidores falhos a suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades; assim fazem os consumidores individuais, encarando suas casas e seus carros como muralhas de fortalezas permanentemente sitiadas.” (p.24)

A menos que esse refugo seja incorporado à própria lógica do jogo: tornam-se consumistas, compram eletrodomésticos, pagam consórcio e frequentam shoppings. Mas, ainda sim, continuam sendo “outros”, que não se misturam com os do lado de cá da fronteira. A falsa integração só ocorre pela força do consumismo.

Acho que é mais ou menos isso aí que vem ocorrendo no Brasil nos últimos 15 anos.

“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à tradição, legitimada pelo anseio de coletivizar o destino humano num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra os seus próprios princípios. (…) A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar. (…) A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolucionários, mas aqueles que, ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos – assaltantes, gatunos, ladrões de carro e furtadores de loja, assim como seus alter egos – os grupos de punição sumária e os terroristas. (…) A busca da pureza moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagagundos e indolentes.” (p. 26)

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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O embate teórico

Stuart Hall

“A única teoria que vale a pena reter é aquela que você tem de contestar, não a que você fala com profunda fluência.”

“Lembro-me de ter lutado com Althusser. Lembro-me de, ao ver a ideia de ‘prática teórica’ em Lendo o Capital, pensar: ‘já li o suficiente’. Disse a mim mesmo: não cederei um milímetro a esta tradução pós-estruturalista mal feita do marxismo clássico, a não ser que ela consiga me vencer, a não ser que consiga me derrotar no espírito. Terá que caminhar sobre o meu cadáver para me convencer. Declarei-lhe guerra, até a morte.”

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. (p. 204)

O trecho acima foi retirado de um ensaio de Hall sobre os legados teóricos dos estudos culturais. Hall descreve como as pesquisas do CCCS de Birmingham haviam herdado marcos conceituais do marxismo, como as noções de poder e exploração, classe social, política e teoria econômica. Por outro lado, o próprio marxismo foi motivo de questionamento por parte dos pesquisadores do centro, principalmente por seu caráter doutrinário, determinista e eurocentrista.

A citação demonstra, ao mesmo tempo, uma postura interessante do autor para com seus “anjos”: um respeito que convive com uma contestação crítica quase “petulante.”

Taí uma postura que ainda preciso desenvolver: olhar para uma obra e um autor com a devida consideração, mas, ao mesmo tempo, desejar derrubá-la e criticá-la.

Em fevereiro de 2014, ele faleceu, aos 82 anos.

E aí, já encontrou seu ‘embate teórico’?

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Codificação e decodificação

“A realidade existe fora da linguagem, mas é constantemente mediada pela linguagem ou através dela: e o que nós podemos saber e dizer tem de ser produzido no discurso e através dele. O ‘conhecimento’ discursivo é o produto não da transparente representação do ‘real’ na linguagem, mas da articulação da linguagem em condições e relações reais. Assim, não há discurso inteligível sem a operação de um código. Os signos icônicos são, portanto, signos codificados também – mesmo que aqui os códigos trabalhem de forma diferente daquela de outros signos. Não há grau zero em linguagem. Naturalismo e ‘realismo’ – a aparente fidelidade da representação à coisa ou ao conceito representado – é o resultado, o efeito, de uma certa articulação específica da linguagem sobre o ‘real’. É o resultado de uma prática discursiva.”

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

Neste trecho, Hall dialoga, de maneira explícita, com a Semiótica de Peirce para descrever seu modelo de codificação e decodificação dos meios de comunicação.

Fiquei um pouco aliviado em saber disso… Estava um pouco aflito em usar ambos os autores na minha tese, pois achava que se tratava de duas correntes bem disconexas.

Conhecendo um pouco melhor o histórico de Hall, isso parece começar a fazer algum sentido. Afinal, sua formação acadêmica foi na área linguística.

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Globo terrestre

“Avant de savoir faire le tour de la terre, de circonscrire en jours et en heures la sphère de l’habitat human, nous avions mis le globe terrestre au salon pour le tâter et le faire pivoter sus nos yeaux.”
ARENDT, Hannah. Vita Activa: condition de l’homme moderne. Paris: Pocket, 1994, p. 317-318.
O globo terrestre é uma ficção cartográfica que permite ter sob as mãos, em casa, à escala que nos convém, uma imagem tridimensional do planeta sobre a qual fomos colocados. O globo oferece uma visão da terra como se estivéssemos situados em seu exterior, em pleno espaço sideral, a uma altura considerável. É a terra vista do alto, de um universo, por sua vez, desprovido de alto e baixo
Representar o real em uma outra escala é verdadeiramente acessar à realidade?
MONSAINGEON, Guillaume. Mappamundi: art et cartographie. Marseille: Éditions Parenthèses, 2013.
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