O aparelho, o funcionário e o pós-industrial

O aparelho fotográfico é, por certo, objeto duro feito de plástico e aço. Mas não é isso que o torna brinquedo. Não é a madeira do tabuleiro e das pedras que torna o xadrez jogo. São as virtualidades contidas nas regras: o software. O aspecto duro dos aparelhos não é o que lhes confere valor. Ao comprar um aparelho fotográfico, não pago pelo plástico e aço, mas pelas virtualidades de realizar fotografias. (…) É o aspecto mole, impalpável e simbólico o verdadeiro portador de valor no mundo pós industrial dos aparelhos. Transvalorização de valores; não é o objeto, mas o símbolo que vale.

Por conseguinte, não vale mais a pena possuir objetos. O poder passou do proprietário para o programador de sistemas. Quem possui o aparelho não exerce o poder, mas que o programa e quem realiza o programa. O jogo com símbolos passa ser jogo do poder. Trata-se, porém, de jogo hierarquicamente estruturado. O fotógrafo exerce poder sobre quem vê suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A indústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum. No jogo simbólico do poder, este se dilui e se desumaniza. Eis o que sejam “sociedade informática” e “imperialismo pós-industrial”. (…)

O aparelho fotográfico é o primeiro, o mais simples e o relativamente mais transparente de todos os aparelhos. O fotógrafo é o primeiro “funcionário, o mais ingênuo e o mais viável de ser analizado. No entanto, no aparelho fotográfico e no fotógrafo já estão, como germes, contidas todas as virtualidades do mundo pós-industrial. Sobretudo, torna-se observável na atividade fotográfica, a desvalorização do objeto e a valorização da informação como sede de poder. Portanto, a análise do gesto de fotografar, este movimento do complexo “aparelho fotográfico”, pode ser exercido para a análise da existência humana em situação pós-industrial, aparelhizada.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. (P. 47-38)

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A caixa-preta

No caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado. Este agente humano elabora símbolos “em sua cabeça”, transfere-os para a mão munida de pincel, e de lá, para a superfície da imagem. A codificação se processa “na cabeça” do agente humano, e quem se propõe a decifrar a imagem deve saber o que se passou em tal “cabeça”. No caso das imagens técnicas, a situação é menos evidente. Por certo, há também um fator que se interpõe (entre elas e seu significado): um aparelho e um agente humano que o manipula (fotógrafo, cinegrafista). Mas tal complexo “aparelho-operador” parece não interromper o elo entre a imagem e seu significado. Pelo contrário, parece ser canal que liga imagem e significado. Isto porque o complexo “aparelho-operador” é demasiadamente complicado para que possa ser penetrado: é caixa preta e o que se vê é apenas input e output. Quem vê input e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta. Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa. Dada a dificuldade de tal tarefa, somos por enquanto analfabetos em relação às imagens técnicas. Não sabemos como decifrá-las.

Se cada trecho bom do livro eu for colocar aqui no blog, vou acabar transcrevendo o livro todo.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. (P. 31-32)

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As imagens técnicas

O caráter aparentemente não simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. Quando critica as imagens técnicas (se é que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo. Essa atitude do observador face às imagens técnicas caracteriza a situação atual, onde tais imagens se preparam para eliminar textos. Algo que apresenta consequências altamente perigosas.

A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado. Com efeito, são elas símbolos extremamente abstratos: codificam textos em imagens, são metacódigos de textos. A imaginação, a qual devem sua origem, é a capacidade de codificar textos em imagens. Decifrá-las é reconstruir os textos que tais imagens significam. Quando as imagens técnicas são corretamente decifradas, surge o mundo conceitual como sendo o seu universo de significado. O que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é “o mundo”, mas determinados conceitos relativos ao mundo, a despeito da automaticidade da impressão do mundo sobre a superfície da imagem.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. (P. 30-31)

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A idolatria das imagens

Imagens são códigos que traduzem eventos em situações, processos em cenas. Não que as imagens eternalizem eventos; elas substituem eventos por cenas. (…) Imagens são mediações entre o homem e o mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre o mundo e o homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra – o home que vive magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e remagicizam a vida.

Trata-se da alienação do homem em relação a seus próprios instrumentos. O homem se esquece do motivo pelo qual imagens são produzidas: servirem de instrumentos para orientá-lo no mundo. Imaginação torna-se alucinação e o homem passa a ser incapaz de decifrar imagens, de reconstituir as dimensões abstraídas. (p. 23-24)

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2011.

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Filosofia da Caixa Preta

Do glossário do Flusser:

Aparelho: brinquedo que simula algum tipo de pensamento.
Aparelho fotográfico: brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias.
Fotografia: imagem tipo-folheto produzida e distribuída por aparelho.
Fotógrafo: pessoa que procura inserir na imagem informações imprevistas pelo aparelho fotográfico.
Funcionário: pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele.
Imagem: superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente.
Imagem técnica: imagem produzida por aparelho.
Informação: situação pouco provável.
Pós-história: processo circular que retraduz textos em imagens.
Pré-história: domínio de ideias, ausência de conceitos; ou domínio de imagens, ausência de textos.
Significado: meta do signo.
Signo: fenômeno cuja meta é outro fenômeno.

Algumas conclusões precipitadas e óbvias sobre essas definições:

1. Se a imagem é superfície e o pensamento é imagem, o pensamento é plano?

2. Se o funcionário age em função do aparelho, ele abstrai o pensamento por ele simulado e vira um mero operador autômato.

3. A informação, para ser pouco provável, deve significar algo novo, desconhecido. Em outras palavras, se você comunica algo que já é conhecido, isso é redundância, não informação.

4. O fotógrafo, portanto, deve informar algo novo na imagem produzida por seu aparelho. Na definição proposta por Flusser, acho que “pelo aparelho fotográfico” ficaria melhor (pelo menos pra mim) se fosse “através do aparelho fotográfico”.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. São Paulo: Annablume, 2011.

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Sustainable Digital Ecology

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O possível adjacente

Johnson comenta o conceito do “possível adjacente” de Stuart Kauffman.

“O possível adjacente é uma espécie de futuro espectral, pairando nas bordas do atual estado de coisas, um mapa de todas as maneiras segundo as quais o presente pode se reiventar. Ele não é, contudo, um espaço infinito, ou um campo de jogo totalmente aberto. O número de reações de primeira ordem é vasto, mas é finito (…). O possível adjacente revela que a qualquer momento o mundo é capaz de mudanças extraordinárias, mas apenas certas mudanças podem acontecer. A estranha e bela verdade com relação ao possível adjacente é que seus limites e alargam a medida que os exploramos. Cada combinação introduz novas combinações no possível adjacente.” (p. 30)

Em seguida, ele comenta que, de acordo com esse conceito, as grandes ideias da humanidade não aparecem em grandes saltos.

“Na cultura humana, gostamos de pensar nas ideias revolucionárias como acelerações súbitas na linha do tempo, quando um gênio salta cinquenta anos adiante e inventa algo que as mentes normais, aprisionadas no momento presente, não poderiam descobrir. Mas a verdade é que os avanços tecnológicos (e científicos) raramente escapam do possível adjacente; a história do progresso cultural é, quase sem exceção, a história de uma porta que leva a outra, permitindo a exploração de uma sala do palácio de cada vez. Mas, como evidentemente a mente humana não é limitada pelas leis finitas da atração molecular, de vez em quando alguém tem uma ideia que nos teletransporta para certas salas adiante, saltando alguns passos exploratórios no possível adjacente. Mas essas ideias quase sempre resultam em fracassos de curto prazo, exatamente por terem dado um salto à frente. Temos uma expressão para qualificá-las: dizemos que estão ‘à frente do seu tempo’.” (p. 34-35)

JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

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The future of learning

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Ideias que se conectam

“Em geral, somos mais bem-sucedidos ao conectar ideias do que ao protegê-las. Como o próprio livre mercado, a defesa da restrição do fluxo de inovação foi durante muito tempo reforçada por apelos à ordem “natural” das coisas. Mas a verdade é que, ao examinarmos a inovação na natureza e na cultura, percebemos que ambientes que constroem muros em torno de boas ideias tendem a ser menos inovadores que ambientes mais abertos. Boas ideias podem não querer ser livres, mas querem se conectar, se fundir, se recombinar. Querem se reinventar transpondo fronteiras conceituais. Querem tanto se completar umas às outras quanto competir.”

JOHNSON, Steven. De onde vêm as boas ideias. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

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Embracing the Remix

A criatividade está fora, não dentro. Dependemos do que foi feito anteriormente por nossos colegas para criar novas coisas.

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