“Babel”: interface de navegação web baseada na organização do conhecimento

Neste estudo, iremos avaliar uma proposta de interface para navegação na Internet chamada “Babel”, criada pelo artista Simon Biggs.

“Babel”: a engenharia reversa das bibliotecas

Biggs é um artista australiano que trabalha com tecnologias digitais desde 1978, quando começou a utilizar computadores para produzir imagens e animações. Desde então, seus trabalhos buscam explorar os potenciais da interatividade digital. Nosso interesse neste estudo estará voltado para a obra “Babel”, de Maio de 2001.

Nessa obra, Biggs construiu um modelo 3D de navegação na web inspirado no sistema de classificação decimal de Dewey, amplamente utilizado na organização de livros em bibliotecas. Em Babel, os usuários percebem, na tela, um ambiente de dados numéricos formatados no padrão sugerido por Dewey. Tais dados estão organizados em linhas e colunas e a navegação ocorre pela simples movimentação do mouse na tela. Números dinâmicos são gerados a todo momento e, cada vez que o mouse é clicado, abre-se uma nova janela do navegador com um site cujo conteúdo esteja relacionado ao número. Múltiplos usuários podem navegar ao mesmo tempo no ambiente e compartilhar, de maneira visual, as ações dos outros usuários. Quanto mais pessoas navegam simultaneamente, novas “camadas” de números são interpostas, criando um ambiente dinâmico e compartilhado de navegação, de forma que um usuário pode ver as ações dos outros. A obra pode ser acessada no seguinte endereço: http://hosted.simonbiggs.easynet.co.uk/babel/babel.htm

Babel - screenshot

Fig. 1: Imagem da obra “Babel”

Sistema Decimal de Classficação de Dewey

A metáfora chave dessa obra de Biggs é a associação conceitual com o sistema Decimal de Classificação, criado por Melvil Dewey (1851-1931). Trata-se do sistema de classificação mais utilizado em bibliotecas no mundo. Propõe a organização de todo o conhecimento humano por meio de um código numérico infinitamente divisível, partindo das classes “gerais” estudadas desde a época das primeiras universidades na Europa. O sistema sofreu inúmeras expansões ao longo dos anos, mas, essencialmente, consiste em classificar todo o conhecimento em dez categorias:

000 Computadores, informação e referência geral
100 Filosofia e Psicologia
200 Religião
300 Ciências Sociais
400 Línguas
500 Ciência e matemática
600 Tecnologia
700 Arte e Lazer
800 Literatura
900 História e Geografia

O sistema utiliza dez classes principais, com divisões e subdivisões em grupos numerados também de 0 a 9, sucessivamente, até que seja suficiente para detalhar a especialização do assunto. Exemplo: 300 – Ciências Sociais, 340 – Direito, 344 – Direito Romano. São também utilizadas “divisões de forma” e “divisões geográficas”, a fim de detalhar o formato do material bibliográfico (dicionários, ensaios, periódicos, por exemplo) e o país específico. Toda publicação, então, pode ser classificada em um critério numérico e facilmente organizada em prateleiras, bastando resumir suas referências em fichas ou cartões para consulta rápida.

Uma breve história social do conhecimento

Como ter acesso à informação precisa? Como classificar todo o conteúdo que é gerado incessantemente pelos blogs, comunidades, listas de discussão e portais de notícias?

Questões semelhantes também preocupavam os contemporâneos de Dewey, porém numa escala e em contextos diferentes. Com a popularização da imprensa, o acúmulo de publicações começou a preocupar alguns “bibliotecários”, que passaram a pesquisar maneiras de se classificar e organizar livros. A partir do século XV, diversas propostas surgiram, quase sempre baseadas nas disciplinas acadêmicas das universidades da época, definidas da seguinte forma: o primeiro grau, ou bacharelado, era composto pelo Trivium (gramática, lógica e retórica) e pelo Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Em seguida, vinham as “disciplinas superiores”: teologia, direito civil e canônico e a medicina. Posteriormente, sob a influência do iluminismo, disciplinas como a engenharia e as artes mecânicas ganharam mais espaço.

BURKE (2003), coloca que modelos de classificação do conhecimento sempre foram perseguidos por filósofos e pesquisadores. Aristóteles já havia proposto, no estudo chamado Organon, a classificação das coisas do mundo nas seguintes categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, condição, ação e paixão. Algumas enciclopédias chinesas, por sua vez, propuseram os seguintes critérios de ordenamento de seus manuscritos: fenômenos celestes, geografia, imperadores, natureza e conduta humana, governo, rituais, música, direito, funcionários, ordens de nobreza, assuntos militares, economia doméstica, propriedade, vestuário, veículos, ferramentas, alimentos, utensílios, artesanato, xadrez, taoísmo, budismo, álcool, medicina e história natural.

Podemos dizer que a classificação do conhecimento sempre esteve, portanto, associada ao contexto sócio-histórico do momento. Porém, sem abandonar a idéia de acomodar novos conhecimentos futuros. Segundo Durkheim (apud BURKE 2003), “as categorias do pensamento humano nunca são fixadas de forma definitiva; elas se fazem, desfazem e refazem incessantemente: mudam com o lugar e com o tempo”.

Internet: “catálogo” digital do conhecimento

A Internet representa hoje o nosso principal repositório de informações. Ao mesmo tempo, constitui-se num ambiente de constante dinamismo, onde relações sociais se estabelecem com o envolvimento de novos atores, a ponto de introduzir um novo paradigma nas comunicações humanas. Assim, de maneira divergente à biblioteca tradicional, a informação na rede é fluida, mutante, desordenada por definição.

Ao associar a tradicional classificação das bibliotecas a páginas de Internet, Biggs provoca uma releitura interessante sobre a atual condição da informação em rede. Mais do que “classificar” e “navegar” na web, Babel remete à questão da sobrecarga de informações. Ao contrário das bibliotecas, que historicamente representam o lugar do “ordenamento” e a “hierarquia”, a Internet se expande de maneira rizomática e caótica, publicando informações desordenadas a todo momento.

Biggs buscou duas fortes referências para a sua obra. A história bíblica de Babel nos conta sobre a proliferação de línguas e culturas num mesmo ambiente, que acabou por levar à desagregação da sociedade. Historicamente, Babel representou um centro econômico, social e político do mundo antigo, que atraía, portanto, diversos imigrantes de diferentes nacionalidades.

Torre de Babel - Brueghel
Fig. 2: Torre de Babel, por Pieter Bruegel de Oude.

Outra referência é o conto de Jorge Luis Borges, “Biblioteca de Babel”. Uma imensa biblioteca, composta por um acervo infinito, supõe registrar, nos seus volumes, toda a realidade existente. Curiosamente, seu material é composto por inúmeras referências repetidas, incompletas, redundantes ou que não fazem o menor sentido.

“Babel”, então, é um signo atual da condição da informação eletrônica. Ao tomar emprestada a taxonomia das bibliotecas para traduzir a Internet, Biggs traz para o nosso cotidiano uma reflexão sobre a maneira como navegamos. Traduz, numa interface visual navegável, porém densa e sobreposta, a informação codificada por um critério lógico. Apresenta-se, no entanto, sem a pretensão de abrigar todo o conhecimento humano atual num sistema organizado e estável de referências.

Interface construída por metadados

“Babel” também pode ser analisada sob outro ponto de vista interessante: o uso dos metadados na construção de sistemas interativos de navegação.

Podemos considerar o código numérico gerado pela classificação de Dewey como um dado qualquer, assim como registros em um banco de dados, coordenadas em um gráfico ou cores representadas por algarismos hexadecimais. O dado em si, não carrega qualquer significado intrínseco. O contexto onde está inserido e sua comparação com outros dados é que nos faz obter uma informação real. Ou seja, a informação surge a partir da interpretação de dados. Em outras palavras, quando construímos sentido aos dados, eles se tornam informação.

Por outro lado, a representação numérica de Dewey carrega consigo uma característica a mais. Ao serem construídos a partir de uma regra ou código semântico compartilhado, os algarismos de uma obra também explicam do que ela se trata. Portanto, ao utilizar um código de classificação socialmente compartilhado para organizar sites da Internet, Biggs foi capaz de construir um sistema de navegação por metadados. Ele acrescentou ao uso comum do hiperlink uma significação a mais, tanto sob o ponto de vista do seu destino (para onde o clique do mouse vai levar), quanto pela sua disposição e movimentação espacial.

Uma das apostas dos pesquisadores para promover uma melhor integração dos dados na Internet é a chamada Web Semântica, baseada em metadados. Os metadados têm sido apontados como uma das soluções para tornar a procura pela informação mais eficiente. A associação de descrições sobre o próprio documento serve como base para melhorar aplicações em diferentes situações, tais como busca e localização, personalização e distribuição automatizada.

Enfim, podemos concluir que “Babel” pode ser interpretada de diversas maneiras. O ponto de vista mais adequado para o recorte desta pesquisa é justamente o fato de que a obra aponta para modelos alternativos de navegação e interatividade na web. Outros artistas e designers também têm estudado essa questão, cuja análise foge ao escopo proposto. “Babel” foi selecionada por representar muito bem a associação de um código semântico (metadados) à maneira como as pessoas navegam na Internet.

Referências

BIGGS, Simon. Website Pessoal. 2007. Disponível em < http://www.littlepig.org.uk/ > Acessado em 06/03/2007

BIGGS, Simon. Babel, 2001. Disponível em < http://hosted.simonbiggs.easynet.co.uk/babel/babel.htm > Acessado em 06/03/2007

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 241 p.

DIETZ, Steve. Reverse Engineering the Library. Minneapolis, USA. 2001. Disponível em < http://hosted.simonbiggs.easynet.co.uk/babel/intro.htm > Acessado em 06/03/2006

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