A revolução cultural atual, a que vai acabar com as formas sagradas, é revolução “técnica”, não política, e é isto que nos confunde. Mas o mesmo pode ser afirmado a respeito de todas as revoluções culturais precedentes. A revolução neolítica, por exemplo, surge a partir de novas técnicas da pecuária e da agricultura, e a revolução industrial surge a partir de novas técnicas apoiadas em teorias. Ambas as revoluções acabaram com o que se tinha previamente por sagrado. Os revolucionários “políticos” vieram depois dos técnicos para injetar “valores”, para “sacralizar” as formas sociais emergentes. Por exemplo, os fundadores das religiões neolíticas, os jacobinos e os bolchevistas. Os verdadeiros revolucionários eram os “inventores” da vaca e da máquina, mas eles não se consideraram revolucionários nem foram assim considerados. O mesmo vale a para a atulidade. São os inventores das imagens técnicas (e dos demais produtos revolucionários) que derrubaram o sagrado, e Daguerre e Niepce são mais perigosos para os nossos valores que Robespierre ou Lenin.
Quem se engaja politicamente na atualidade deve se haver não com as formas sagradas, mas com as novas técnicas. Seu engajamento deve ser o de “valores” nas formas emergentes. E, para fazê-lo, precisa analisar criticamente tais novas formas. (…)
O novo engajamento político, entretanto, não se dirige contra as imagens. Ele procura inverter a função das imagens, mas admite que elas continuaram a formar o centro da sociedade por todo o futuro previsível. Ele procura fazer com que as imagens sirvam a diálogos mais que a discursos, mas não pretende aboli-las. O novo engajamento político nasceu no interior da revolução técnica atual, ele não se opõe a ela. (…) É que os novos revolucionários são “imaginadores”, eles produzem e manipulam as imagens, eles procuram utilizar sua nova imaginação em função da reformulação da sociedade. Os novos revolucionários são fotógrafos, filmadores, gente do vídeo, gente do software, e técnicos, programadores, críticos, teóricos e outros que colaboram com os produtores de imagens. Toda essa gente procura injetar valores, “politizar” as imagens, a fim de criar sociedade digna de homens.
(…) Tal reformulação revolucionária da sociedade informática, na qual as imagens deixariam de ser imperativas e passariam a ser dialógicas, seria ainda sociedade “informática”, mas com um significado novo para o termo.
Flusser escreveu isso em um contexto onde a efervescência das novas tecnologias de comunicação se tornava cada vez mais evidente. Os mass media, tal como foram idealizados no modelo de broadcast começavam a sofrer abalos estruturais pelos fluxos laterais proporcionados pelas tecnologias de comunicação em rede e pela informática. De fato, como foi possível constatar após esses anos, os verdadeiros revolucionários desse período (as últimas 3 décadas do século XX), não foram aqueles que berraram contra a TV e os jornais nas ruas, com megafones, cartazes, bombas e golpes de estado. Mas sim os técnicos que se aprofundaram na tecnologia para usar a informação (a “imagem” no caso do Flusser) para revirar o balaio. Foram os pesquisadores americanos inventores da internet, uma rede descentralizada justamente construída sobre uma plataforma mantida por uma das entidades “sagradas”: o exército. Essa visão “otimista” sugerida pelo Flusser foi muito bem captada por outros autores mais contemporâneos, como Castells e Levy. A “sociedade em rede” e a “cibercultura” de fato sintetizavam o espírito revolucionário da virada do século. (eu adoro esses textos!)
Após alguns anos, o otimismo esfriou? Quando vemos a inundação de dados (selfies, foodies, check-ins, tags, tweets) gerada pelas câmeras dos smartphones, GPS e outros dispositivos hiperconectados não estaríamos diante de uma nova da massificação desestimulante? Qual é o sentido dessa profusão? Os gênios revolucionários da tecnologia (Steve Jobs e Google) criaram os novos monstros engolidores de dados do momento. Tais revolucionários visionários, assim como os burgueses jacobinos e os bolchevistas, foram astutos e espertos o suficiente para fazer a revolução, mudar as peças do jogo e tomar a champagne no final.
Talvez a alternativa esteja dentro do próprio sistema, como por exemplo a cultura do software livre as iniciativas dos dados abertos.
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.